O «Monde Diplomatique» começou a fazer, na edição portuguesa de Novembro, um inquérito a propósito da velha questão do papel ou não papel do intelectual no mundo de hoje. Em baixo se sugere a leitura
da resposta de João Barrento, no seio da qual podemos destacar uma ideia essencial:
«[…] Um filósofo como Jacques Rancière poderia aqui servir de referência. Para este pensador, uma obra de arte funciona hoje muitas vezes como «manifesto mudo»: está aí e fala. Ao comentar o filme de Pedro Costa O Quarto de Vanda, Rancière destaca nesse filme o gesto da recusa de intervir como algo que nos coloca na presença do que é político pelo simples facto de nos mostrar a sua força. Acabámos de ter, nas últimas semanas, um outro exemplo disto no caso da greve de fome de Luaty Beirão em Luanda. O que aconteceu na fase histórica mais recente, diria eu, evocando o conhecido poema de Kavafis, foi a barbarização do intelectual, a sua necessária dessacralização. É uma forma daquilo a que Benjamin chamou «barbárie positiva», em que o discursivo dá lugar ao performativo, a retórica à acção, o pensamento abstracto a formas de arte ou de pensamento vivos. Isto aplica-se particularmente a épocas como a nossa, talvez não ainda de decadência aberta, mas certamente de declínio de um modelo, uma época que, nas suas instâncias dominantes, anulou qualquer olhar crítico sobre si própria e prossegue o caminho para o abismo em plena cegueira. Neste contexto, os «activistas estéticos» de hoje são os novos bárbaros, os que já estão há algum tempo dentro das portas da cidade. São aqueles que vieram para agir, para pôr fim ao reino dos oradores e às suas «eloquências e retóricas», próprias de épocas vazias – ou demasiado cheias, ideologizadas, de um e de outro lado. Depois, talvez os intelectuais regressem à polis investidos de outras funções. Por enquanto, os novos bárbaros que se instalaram portas adentro na cidade podem ser os pensadores ou os activistas, os artistas ou os colunistas da imprensa, os escritores ou os programadores culturais, os historiadores ou os cientistas…
Concluo que não chegámos ao fim de uma era com o desaparecimento do intelectual de perfil clássico, que conhecemos de Voltaire a Sartre e Pasolini – ou também, entre nós e durante décadas, de Eduardo Lourenço. O que aconteceu é que o seu centro se estilhaçou. Mas continuam aí figuras a que podemos chamar os intelectuais da era digital, ou global, que se servem de vias e suportes diferentes dos tradicionais (Bernard Stiegler, por exemplo, actua insistentemente sobre as consciências através da Internet), e que agem separadamente, dispersamente, mas muitas vezes com clara convergência de propósitos e resultados. Os efeitos destas formas de intervenção dispersas são diferentes, mais imprevisíveis, mais plurais, em geral mais «leves». Por outro lado, as intervenções deste tipo no tecido social não serão tão clara e explicitamente «políticas» – sem deixarem de o ser –, mas isso deve-se ao facto de a política ela mesma ter deixado de ser o que era. Deixou de precisar de ideias, deixou mesmo de ser uma «arte» – a do possível –, para se transformar cada vez mais em espectáculo mediático em vésperas de eleições, num discurso sofista ao nível do da publicidade e num jogo ilusório de soberania, enredada nas malhas que o império da finança global tece.
É a esta forma nova de política que responde essa nova figura da «função intelectual» disseminada pela anarquia criativa de uma nova «intelectualidade sensível» e plural.»
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